terça-feira, 4 de setembro de 2012

É Uma Coisa Tremenda o Que nos Está a Acontecer

E quando uma coisa tremenda acontece e essa coisa é mesmo a sério não choramos. Quando uma coisa tremendamente monstruosa nos acontece e essa coisa não é só nossa, mas arma silenciosa que dispara nas cabeças de tantos outros e outras como nós, não nos atiramos à noite de uma ponte para o fim do medo. Ficamos sim com muita vontade de não estarmos so
zinhos. Reaparecem-nos desejos antigos adormecidos que lentamente foram sendo amaldiçoados, roubados, achincalhados: o desejo de colectivo, de irmandade, de semelhança, como se saíssemos de um longo sono embalado na tranquilidade de uma vida feita à medida. Acumulando sonhos que nos foram vendendo, carros e casas, férias na República Dominicana, coisas inúteis como dez pares de sapatos mais a graxa para os sapatos, pílulas para emagrecer, pílulas para adormecer e licenciaturas e mestrados e doutoramentos e pílulas para enganar o vazio de cada uma destas vidas nunca desmedidas, fomos esquecendo (para este sistema de exploração de vidas a memória é comportamento perigoso). Fechámo-nos a sete chaves no cubículo-minha-casa e começámos a acreditar que este é o único modo de vida possível e que o nosso sistema é infalível e melhor do que todos os outros e que se calhar até é eterno, só pode ser, sempre houve bancos e companhias de seguros, ou não? E se existem é porque nos fazem falta e até nos ajudam, o que seria de nós sem eles? E quem não é como nós tem de ser, temos de os obrigar a serem felizes como nós nem que seja à bomba, que se lixem os danos colaterais. A paranóia do consumo sempre directamente proporcional à paranóia securitária e eu existo e o meu vizinho é estranho e tenho medo dele e se algum sentimento mais próximo posso ter será sempre o da inveja. Também o medo da diferença que, com habilidade e depressa se transforma em ódio. Aguçaram-nos o engenho de “descubra a diferença em 10 segundos”: diferença de cheiros, comidas e paladares, diferença da opção sexual, da música, da fala e a diferença passou a coisa estranha e o que é estranho é inimigo. E assim fomos ficando sozinhos, olhos abertos iluminados, não por aquela luz que vem de dentro e que atravessa as coisas e a história de trás para a frente, mas uma luz fria azulada que vem de fora e nos empalidece o corpo todo, a luz fria dos écrans da TV, do computador e uma única parte do corpo a desenvolver-se, ágil e cumpridora, o dedo indicador dos "like like like". Escravos do século XXI sem direito a cama e a comida. Sem direito sequer a deitarmo-nos no chão sobre a terra porque gente como deve ser tem de ter cama e é preciso uma cama e aquela do Ikea, viste? E o colchão? Tem de ser ortopédico… mas deixam pagar a prestações… eu usei o cartão de crédito… Escravos do século XXI sem direito a uma malga de arroz e couves arrancadas da terra porque nem terra já temos e é preciso a rúcula… e as fibras? Esse iogurte é grego?
Escravos do século XXI deambulando pelas ruas, olhos de fome, chão frio dos passeios cobertos de cartão e jornal, excluídos, não-gente, zeros-à-esquerda, eles não querem é trabalhar, merda de gente… Escravos do século XXI em filas adormecidas na esperança de um trabalho porque os miúdos começaram já a chorar à noite agarrados ao estômago, e aceito seja o que for, 400 euros já davam jeito, sem contrato? o que é que se há-de fazer? pode ser, há um ano que procuro. não há nada? Tiro solitário no meio da testa, corda pendurada no sobreiro, a planície sozinha, tu sozinho, os teus filhos sozinhos, a tua vida pequenina, sem nunca teres percebido que ela era grande e única e possível.
Uma coisa tremendamendamente monstruosa está há muito tempo a acontecer e é agora uma besta de dentes de fora e está mesmo à nossa frente. Uma besta com cara (muitas caras) e nome (muitos nomes) e com contas nas ilhas Caimão morde-nos há muito tempo a carne, dilacera-nos a vida: o capitalismo, o capitalismo financeiro travestido de FMI, BCE, GOLDMAN SACHS, etc. consoante a tática do roubo, da invasão, da expropriação, de uma guerra que não é nossa.
E oiço-te dizer: já não acredito em manifestações, não dá em nada. E eu quero dizer-te: tenho saudades de estar contigo e quero saber o teu nome. Esta multidão não é um punhado de gente, cada um, cada uma tem um nome. Esta multidão é um somatório de braços e mãos e vozes que pode realmente transformar quando todos e todas percebermos e declararmos com a fúria da razão que é nossa: as ruas, a terra, os rios são nossos. O serviço nacional de saúde, a televisão pública, a água, as escolas são nossos. Nós pagámo-los e ninguém pode, assim, só porque dá jeito a um bando de criminosos, destruir e fazer o que lhe apetecer com o que é meu, com o que é nosso. A força do trabalho é a minha força. Que se lixe a Troika!
É uma coisa tremenda o que está a acontecer e precisamos urgentemente de fazer qualquer coisa de extraordinário.

ANA C. GONÇALVES