quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Texto de Myriam Zaluar

Um dia, tudo isto terá passado. Um dia, todo o pesadelo que temos vivido será apenas uma recordação dolorosa que tentaremos encaixar numa lógica qualquer. Os historiadores estudarão, perplexos, os tempos em que a democracia foi suspensa e o Estado deixou de ser uma pessoa de bem para se tornar num escroque. Os nossos filhos, os nossos netos ouvirão, incrédulos, as histórias verdadeiras que lhes contaremos, sobre a forma como direitos já conquistados há décadas pelos nossos avós e bisavós e consagrados nas tábuas da lei fundamental tiveram de ser novamente disputados, arrancados a ferros de algozes disfarçados de economistas. De como, em pleno século XXI, fomos obrigados a ocupar escolas e hospitais e fábricas e padarias e supermercados e campos e casas, porque nos haviam tentado — e em muitos casos conseguido — roubar a paz, o pão, a habitação, a saúde, a educação. De como tivemos de deitar muros abaixo e de construir pontes onde já só restavam fossos. De como abolimos fronteiras e demos as mãos aos que, do outro lado, apenas aspiravam a uma vida digna. De como erigimos uma terra sem amos e resgatámos os nossos sonhos. E saberão que foi por eles que o fizemos, por eles e por nós, porque ansiávamos pelo sal e pelo mel, porque nos tinham tapado o sol e secado a terra, porque já não aguentávamos ver as nossas vidas por um canudo, por mil canudos, sem os quais afirmavam nada valermos, mas que, após dura obtenção, só nos garantiam o direito a emigrar, a exilar-nos.

Um dia, tudo isto que passamos será passado, marca, cicatriz. Não conseguirão fazer-nos esquecer, mas transformaremos as nossas dores em árvores de fortes raízes. Penduraremos os recibos verdes em paredes antiquíssimas de museu e contaremos aos nossos netos que um dia, há muito, muito tempo, os que mandavam neste país quiseram condenar-nos a pagar impostos sobre dinheiros que nem sequer ganhávamos. Que quiseram deixar-nos à míngua, fazer-nos pagar por bens que eram nossos, que depois de destruírem o que produzíamos nos fizeram comprar a outros todos os víveres de que precisávamos para sobreviver. Que nos quiseram matar à espera de tratamentos nos hospitais, que tornaram o saber num luxo incomportável, que afastaram as nossas crianças das escolas, que acabaram com os caminhos de ferro e com os comboios, que limitaram as redes de transportes públicos, enfim, que tudo fizeram para que deixássemos de nos divertir, de sair à noite, de ir ao teatro e ao cinema. Que puseram aqueles de nós que tinham empregos a trabalhar por dois, por três, por quatro e que despediram os outros, de forma a que os primeiros caíssem de exaustão e os segundos de frustração, de desânimo e de isolamento.

Contar-lhes-emos como um dia fomos obrigados a abolir pela segunda vez a escravatura, pois tentaram convencer-nos que era normal trabalharmos para aquecer, para fazer currículo, tendo de provar uma vez e outra e outra o nosso mérito, as nossas capacidades, enquanto outros tudo tinham, muito embora ninguém percebesse muito bem de onde lhes vinha a fortuna. Explicaremos aos nossos netos que aos pais deles foi roubada parte da infância, porque, sorrateiramente, um bando de malfeitores mascarados de especialistas nos conseguiram durante algum tempo persuadir que termos casa e carro e telemóvel e dinheiro para acampar no verão e ir ver a neve no inverno era um luxo ao qual não nos podíamos dar, porque éramos pecadores e criminosos, embora não nos conseguíssemos lembrar o que raios poderíamos ter feito de tão grave para que os nossos filhos merecessem tal castigo. E eles espantar-se-ão e perguntarão como foi possível que nos sujeitássemos, tão pouco tempo após a sua conquista, a perder direitos tão fundamentais como o direito a trabalhar e a viver no país onde nascemos. O direito a simplesmente querermos ser felizes.

E não saberemos o que responder-lhes. Porque na verdade teremos nós próprios dificuldade em perceber como chegámos nós um dia ao ponto a que chegámos. Mas saberemos sim que um dia dissemos basta, que um dia, com toda a força e veemência da nossa razão e da nossa vontade exigimos o que é nosso. E nos erguemos, já não como rios, mas como marés, como mares, como oceanos de certeza.

Nesse dia, sairemos das nossas casas aquecidas e mostrar-lhes-emos os caminhos que desbravámos juntos: caminharemos pela República, da José Fontana à Praça de Espanha. Desfilaremos nas Avenidas que são da Liberdade e desembocaremos de novo nos Terreiros que são do Povo. Com eles, entoaremos Grândola Vila Morena, duas vezes senha, duas vezes sonho, e as lágrimas brilharão nas nossas vozes e os versos ecoarão nas nossas memórias como ecoaram um dia nas escadarias e corredores dos Passos Perdidos, sob o olhar embargado dos polícias que só desejavam poder connosco cantar. Recordaremos o 2 de Março, o 13 de Outubro, o 15 de Setembro, o 12 de Março e de novo o 1º de Maio e o 25 de Abril, uma vez e outra e outra ainda, um dia, a chorar de alegria, de alívio precoce e intranquilo, com a certeza de que todos os invernos vão dar à primavera e de que os homens que dormem acordam sempre um dia. Um dia...

Texto de Sérgio Godinho


Maré alta

Em 1971, para encerrar o meu primeiro disco, Os Sobreviventes, escrevi uma canção com uma das letras mais curtas:
«Aprende a nadar, companheiro, que a maré se vai levantar, que a liberdade está a passar por aqui. Maré alta maré alta maré alta». Às vezes o menos é mais.
Estávamos então em pleno marcelismo, e digo-o com letra pequena porque era uma versão já semi-inerte do fascismo. E no entanto, havia ainda uma polícia política, agora com três letrinhas apenas, DGS, que se dedicava às mesmas nobres actividades da PIDE sua mãe. Vigiar, prender, torturar, nada de novo. Havia uma guerra colonial que se arrastava pelos campos minados de África, campos imensos sem fim à vista nem esperança de solução. E muitos mortos e feridos e enlouquecidos. Havia censura de peneira fina, e havia a emigração dos pobres, uma peneira de furos largos a deixar fugir o melhor de nós.
E no entanto a liberdade estava a passar por aqui. «O solo que pisamos é livre, defendamo-lo» foi o que pensaram e fizeram muitos resistentes, novos e antigos.
Havia um velha adivinha que perguntava: «Qual é a altura do Salazar?» E respondia-se: «É a altura de se ir embora». O mesmo valia para a sua herança e os seus descendentes. Era altura de se irem embora.
Foi nesse conjunto de pensamentos e acções que se chegou à luminosa manhã do 25 de Abril. Vim então de longe, como muitos de nós, para ver e acreditar nos meus olhos e em todos os meus sentidos. E para cantar pela primeira vez no centro do redemoinho de uma maré alta onde todos pudemos vir à tona e navegar à vista longínqua.
Passados todos estes anos, sabemos como o país está em maré intencionalmente esvaziada e sangrada, e assim estará nos tempos mais próximos, aconteça o que acontecer.
Mas não interiorizemos o medo escuro nem o conformismo pardo. O presente tem «o acesso bloqueado»? Cabe a nós encontrarmos novas chaves, novos atalhos, novas formas activas de o usufruir. Queremos as nossas vidas, sim, por difícil que seja habitá-las neste presente sombrio.
O solo que pisamos é livre, e desde há muito terreno libertado. Defendamo-lo.
A liberdade está a passar por aqui.

Texto de Rita Red Shoes

O medo faz parte da minha vida.
Desde pequena que a falta de liberdade me assusta. O não ter espaço para a minha voz e para os meus movimentos. O medo do escuro no preconceito, na desilusão, na falta de harmonia. Na solidão. São medos que, com o tempo, tenho vindo a aceitar como condição para viver esta vida.
Mas ter medo do estado é coisa pouco bonita. É coisa feia. E é coisa que veio ocupar espaço a mais no meu lado negro, como uma inevitabilidade. É o que agora sinto. Não como menina pequenina mas como mulher que sonhou com uma vida aqui, onde há história dos meus pais, dos meus avós e dos meus amigos.
O medo que a bondade e a justiça não existam de todo e que a crueldade, a frieza e os números ditem os afazeres no meu país. O fazer desfazer. O desfazer pessoas.
Tenho medo que a tristeza nos assole de vez. Que as vozes esmoreçam por falta de forças. Que os movimentos se toldem por amarras perversas. Que nos isolemos e que o amor não chegue.
Que estado é este? Um vento forte que derruba as árvores e as casas, de Norte a Sul, que não pede licença e leva as sementes para fora dos campos? Que põe montanhas fora dos seus lugares e que tapa as vistas com destroços? Que estado é este? Para onde é que vai tão apressado? O que restará? E parece tão perdido. Vazio.
Este estado não me representa. Não me representa como cidadã e pessoa. Não tem o meu orgulho nem compreensão. Este estado envergonha-me porque os seus valores não se encontram com os meus. Este estado que se desculpa com o estado a que as coisas chegaram. O estado dos bons meninos cumpridores que eu não consigo desculpar.
O que me ilumina é saber que somos muitos. É perceber que a dor que, deste lado sentimos, é sentida na pele e não num papel. É real. Faz mossa e entristece. E isso faz com que se cante, que a voz soe e que os movimentos se libertem. Calar o medo. Calar o medo. Calar o medo.

Texto de Ana Nave

Dia 2 de Março vou para a rua juntar-me a todas as pessoas que, como eu, já não aguentam mais ser governadas por quem insiste em tratar-nos como se fossemos números.

Texto de José Reis Santos


Requiem for Portugal

When, on the dawn of April 25, 1974, Radio Renascença played Zeca Afonso’s Grândola Vila Morena, few knew that the song was the final password for the coup d’état that would overthrow Portugal’s 48 years long right wing authoritarian regime, and that we were listening to a last Mass of a defunct regime. That was the dawn Portugal waited for, “the initial and long day, which emerged from the night and the silence, to inhabit the substance of time” — as Sophia de Mello Breyner so brilliantly poeticized. It was the dawn of all hopes, all dreams and utopias. The dawn when the Portuguese people finally restored their rule, in their cities, seeing in every corner a friend, “in each person equality”. Portugal became, on that same dawn as the coup evolved to a social revolution, a “land of fraternity”, as Zeca Afonso wished, and a land of liberty, as everyone desired.
Within a generation we endowed the country with a political system suitable to fit the demands of last century’s formal democracies. We withdrew our people from a forced and obscure illiteracy and a rigid social stratification, built the most qualified generations of our history, and instilled the idea that we would enforce a culture of merit suitable to the demands of our contemporaneity. Likewise, we empowered our women and gave our minorities the rights of majorities, finally adding Equality to Freedom and Fraternity. We dreamed about a rainbow country, politically modern and economically and socially progressive, after 48 years of medievalism, painted in shades of black and dark greys.
We believed that the future would bring more equality, more equity and more social justice. For this, we tolerated the deterioration of our party system, widespread clienteles and nepotism, the return of our oligarchic and egocentric elites, the consecutive mismanagement of public affairs, and even the advent of an unprepared and ill-skilled political elite. We took it all, until our current right-wing (liberal) government, sheltered by the IMF and the Barroso Commission, cynically targeted labour rights, public services, the National Health Service and all that we built during 38 years of democracy; hitting hard our hearts, stomachs and wallets. As a result, our economy stagnated, unemployment grew, precariousness became social normality and emigration rampaged. Meanwhile, the government sponsored wild privatizations, dismantling the state and public sectors, while selling profitable public enterprises for a friendly penny. Their aim is to privatize our lives and reduce all labour costs in benefit of big companies and profits for the markets and their CEO’s.
Our livelihood and our dignity were taken away. Hope became a plane ticket or the belief that somehow we will survive this shock therapy designed by autistic economics professors obsessed with excel files — this collective coma induced by crazy Ivy League fanatics detached from social reality. Behind this treatment is the troika (and the Barroso Commission), an unelected government that decides our present and conditions our future; that condemns our dreams to death and our life to a pitiful and impoverished daily search for bread and ways to pay our rent. Troika’s aims are clear: to increase our debt, impoverish our country and the majority of our people, annihilate the economy, reduce common wages and acquired rights, destroy the social state, while enriching a minority of selected few. Their success depends on our misery.
As such, today we can no more believe in the ability of those who hold our key institutional positions. They sell our country cheap to a foreign economical occupation. Besides, our government consecutively lies and fails all targets, the President (who could dismiss the government) does nothing, and the opposition rests in its inefficiency. All we have left is the sheer force of our resistance, of our protest, of our indignation. Today, one way to preserve our dignity and fight for an alternative, progressive and fairer society, is through social protest and collective indignation.
It's not enough anymore to ask us to blindly trust the polls when mediocre elites are regularly elected. “Democracy” is not, and cannot be, an institutional excuse to convince us that the legitimizing value of the people exists only on a magic piece of paper. “Democracy” is to be lived every day, in every act of government, in each objection and counter-proposal by the opposition, in each protest or demonstration of civil society, organized or otherwise. And because Grândola Vila Morena gauges the quality of our civility, the essence of Portuguese progressiveness, we need to sing it daily, as this Mass cannot wait another four years to be sung.
The question of the day is: what to do when a government lies and deceives, when the opposition is ineffective and indecisive, when the system key holders don’t react? What are the alternatives to social indignation? Promote a riot or a general insurrection? Accept the inducted coma and lay down? Or wait for 2015, the date for Portugal’s next general elections? I do believe it is imperative to have some caution, to quickly detach us from the induced coma and demonstrate, singing with full lungs to our supreme magistrate (i.e. Portugal’s President of the Republic), that the regular working-mode of our (political) institutions are at risk, that the system is facing institutional meltdown. And therefore he needs to intervene. Urgently.
Meanwhile, I urge all European citizens, from all political spectrums, with or without political party, with or without employment, with or without hope, to join us on our peaceful protest, because what’s happening to us, in Portugal, it’s either happening to you as well, or soon will be.
And if we manage to take to the streets the noise and fervour of our indignity; if we demonstrate our unrest and just claims and display — through the strength of our numbers and the common sense of our proposals — that the boundary between bad government and institutional and social illegitimacy cannot be crossed, we will win this historical fight. We can tolerate bad governments, and vote them out when we have the chance. But governments that constantly lie, flip-flop on their electoral platform to install a minimalist, ideology-based program, annihilating our social welfare state (only to benefit the markets and their owners) — that, we cannot tolerate. Not anymore.
Civil society must then continue its noisy Requiems, this time for Portugal, critically intervening in public affairs, in order to force a regeneration of both the political and the party systems throughout Europe. That’s why you must hit the streets on March 2, and transform an announced Missa pro defunctis into an idea of the future — always to the sound of all the “Zeca Afonsos” existing throughout our indignant Europe.

 

Grande Oficina Popular

No sábado vamos fazer uma Grande Oficina Popular junto à estátua do Marquês, às 14h00.
Qualquer manifestante pode fazer, ou pedir aos designers e artistas que lá estarão, o seu cartaz, lona, faixa ou bandeira, com as frases e imagens que desejarem.
Se quiserem participar levem:
- cartões, cartolinas, lençóis, lonas
- Tintas de Spray, Marcadores, Tintas e pincéis, Fita-cola preta
- Paus de vassoura, de bandeira, madeiras para suportar cartazes
- Escantilhões de letras (daqueles antigos), "Stencil", recortes de imagens do Passos Coelho, Relvas, Portas, Cavaco....
e tudo o mais que a vossa imaginação se lembrar!

Texto de Joaquim Paulo Nogueira


Salvar os países começa por ser salvar a Europa. 
 
Dia 2 de Março é mais um passo no percurso de fortalecimento da nossa participação cidadã que começámos a trilhar mais intensamente a partir do 12 de Março de 2011. Não será o último. A urgência deste percurso é ditada pela consciência de que vivemos uma rápida degeneração política da vida em democracia na Europa.
Não sei se há outra definição para a ideia do abismo político em que nos encontramos
: condicionados a escolher governantes que se apresentam a eleições com um determinado programa político, sabendo eles, e sabendo nós, que eles vão governar através de memorandos políticos firmados com o BCE, o FMI e a Comissão Europeia.
A política europeia foi sequestrada por um pensamento e uma doutrina onde a lei do mais forte é imperativa e substitui a ideia comunitária. Salvar os países começa por ser salvar a Europa.
Parece um objectivo inalcançável, não parece? Não foi assim que o pensaram aqueles que perceberam que para matar a Europa tinham de começar a destruir aquilo que era o elemento diferenciador da presença política europeia: a solidariedade, seja lá o nível ou o âmbito - local, nacional ou global – pelo qual a encaremos. É uma existência paradoxal, sempre: a força da Europa, a sua união politica e económica é também o ponto de partida para a sua imensa vulnerabilidade.
Face a esta verdadeira catástrofe política em que a Europa está mergulhada, e quando o sistema político parece só conseguir replicar a tragédia da política, a questão é de natureza cultural: como não nos encontrarmos? Como não descermos juntos as ruas? Como não enchermos connosco as nossas praças? A questão não será tanto em torno das razões que temos para sair à rua, elas multiplicar-se-ão exponencialmente por toda a nossa diversidade política, cultural, social, a questão é outra: como poderemos ficar em casa quando todo o nosso mundo está a ser destruído?
No dia 2 de Março descerei a Avenida da Liberdade com muitas pessoas que exigirão a demissão do Governo. Não sendo isso para mim uma questão essencial – este governo não me desiludiu em nada, infelizmente - não me incomoda nada dar as mãos a todos os que querem o seu fim. Este é um governo que perdeu toda a legitimidade política para poder governar e que já não estaria em funções se em Belém tivéssemos um Presidente que vigiasse o exercício governamental. Ou se tivéssemos já interiorizada uma cultura e uma ética política em que os governantes se sentissem responsáveis perante a comunidade. Em vez de exigir a demissão deste Governo, prefiro pensar que a rua irá dar àquele vasto campo político a que costumamos chamar Esquerda, forças, ideias e dinamismo para criar uma alternativa política.
Talvez haja condições muito particulares para isso: em primeiro lugar, a destruição do Estado Social, nos seus diferentes domínios, saúde, educação, justiça, cultura, já não se situa no plano da querela ideológica entre Esquerda e Direita, foi transposto para um plano tão descarado da pilhagem dos recursos públicos que até a base ideológica da direita cora de vergonha e desaprova o saque.
Depois, a destruição da economia está a ser feita através de uma subordinação cega a planos e programas económicos cuja legitimidade não decorre daquela credibilidade de natureza económica que a direita gosta de exigir como seu pergaminho político. Apenas se funda no uso férreo de um autoritarismo e poder discricionário do Estado no aumento da colecta de que tanto se envergonha o liberalismo económico. E ainda, pelas condições muito particulares em que o sonho de uma Europa se transformou rapidamente no pesadelo de um totalitarismo financeiro que — incompreensível ou paradoxalmente — parece basear o seu cerco, a sua tutela e a sua força na incapacidade de responder positivamente às questões existenciais das pessoas, das comunidades e dos povos.
Por isso também é tão importante sair à rua em 2 de Março, anunciando a primavera que aí vem: não há esquerda credível sem uma rua forte, sem uma rua em festa, sem uma rua participada e cidadã. E desde o 12 de Março muito tem sido feito para reacender esse fogo comunitário. Pese embora a verdadeira destruição de grande parte da nossa actividade cultural e artística nos últimos anos, o que em si é uma tragédia para o desenvolvimento da comunidade e também da nossa cidadania, tem sido nos movimentos de cidadãos — onde avulta para mim a Auditoria Cidadã à Dívida — que tem surgido uma dinâmica cultural e de participação política que fortalece a comunidade.
Porque o pesadelo que estamos a viver é também uma consequência da intensa manipulação ideológica em que mergulhámos e que é tão mais violenta quanto vive de um contexto em que o manipulador é também o manipulado. Criámos um paradigma mistificador que é o condicionador da nossa vida política: para nos encontrarmos temos de ter alternativas, temos de ter razões, temos de ter ideias. E deveria ser exactamente o contrário: deveríamos encontrarmo-nos para construirmos alternativas, para pormos em causa as nossas razões, para começarmos a pensar de outra maneira.
É essa vaga que este mar anónimo e manifestante que tem oposto à Europa dos jogos de títeres e da usurpação política a ideia de uma Europa das Pessoas tem trazido. É difícil assim encontrar razões para não sairmos de casa. Juntos temos menos medo, juntos metemos mais medo ao medo que por aí começa a querer andar descaradamente em forma de intimidação, de interrogatório, de inquietante perversão do uso dos meios públicos de segurança. Eles não sabem que o autoritarismo pode fazer da vida de cada um de nós um pequeno inferno existencial mas só consegue tirar de cada cidadão a sua liberdade se este já tiver, previamente, abdicado dela. É isso que a rua nos faz, é isso que nós fazemos na rua. O povo é quem mais ordena, dentro de ti, ó cidade.

Texto de Cristina Cavalinhos

47 anos de vida, 30 a ser actriz.
O meu pai sempre me disse que desde que eu corresse atrás dos meus sonhos, desde que batalhasse, ia conseguir.
Ele batalhou por este país, correu atrás de um futuro melhor. E eu assim fiz, batalhei, corri atrás, fiz teatro, televisão, cinema, dei aulas, trabalhei em bares, escritórios. Nunca tive subsídio de férias nem de Natal. Mas nada disso me demovia do meu sonho e da minha batalha.
E agora? De que me serve batalhar e sonhar num país sem futuro?
Não, Não!!! Eu vou continuar!

Texto de Tiago Torres da Silva


PORQUE É QUE EU VOU À MANIFESTAÇÃO DE 2 DE MARÇO

Porque é que eu vou à manifestação de dia 2 de Março?… Pela mesma razão que fui a todas as outras. Porque vejo um povo sem futuro, sem esperança, sem nenhuma possibilidade… Porque vejo a corrupção celebrada como uma fatalidade do destino e não acredito nisso… porque escuto os meus semelhantes… ouço-lhes os gritos, as revoltas… e sinto-me irmão deles, ainda que eu seja um privilegiado porque, apesar de pobre, ainda tenho um telhado sob o qual dormir e uma refeição à mesa… mas já não ligo os aquecedores quando está frio… já vou dormir mais cedo para poupar na conta da luz...
Todas as pessoas que conhecem o teatro que escrevo e enceno sabem que, mesmo quando eu falho, ele é sempre uma tentativa de dar voz a quem não tem voz. No meu teatro dei voz a prostitutas, travestis, sem-abrigo, actores sem trabalho, yuppies solitários, velhos, soldados deixados para trás em guerras que eles próprios desconheciam. Penso que a Arte é o lugar que pode existir como contraponto do poder instituído por governos feitos por políticos criados nas «jotinhas». Mete-me nojo saber que as próximas eleições, por fatalidade, serão ganhas pelo Partido Socialista e as que vierem a seguir serão ganhas pelo PSD. Alguma coisa terá de mudar e, no entanto, sei que bater nestes nossos governantes é quase como gritar com o caixa do supermercado por causa das políticas dos seus superiores. Quem manda nisto tudo, o nosso maior inimigo é o poder financeiro, as empresas de rating que colocam seus apoderados em lugares chave um pouco por todo o mundo. Vencê-los é a única vitória que poderá trazer um bocadinho de justiça e harmonia ao mundo. Nunca o valor da vida foi tão baixo. Nunca valemos tão pouco como agora e por isso é este o momento de bater nos caixas do supermercado para que estes levem o nosso protesto aos seus superiores e estes a outros e aí por diante até que todas as Goldmans & Sachs e quejandas tremam de medo.
Gosto muito de ver documentários sobre a natureza. Muitas vezes vejo ataques de três ou quatro leões contra uma manada de búfalos. Os búfalos, muito maiores, em maior número e mais fortes, fogem e, por isso, três ou quatro leões conseguem matar a presa que lhes parece melhor. Mas, algumas vezes, os búfalos unem-se e reagem. Na força de serem muitos, viram-se contra os leões e dizimam grupos inteiros. Vão fêmeas, machos, crias… Vai tudo pelos ares… e o rei da selva é aniquilado...
Os poderosos deste mundo são meia dúzia e contam com o nosso medo para fugirmos cada um para seu lado e assim ficarmos à mercê do seu desejo de carnificina. Mas vai haver um dia em que nós vamos dar as mãos e vamos investir contra eles. Nesse dia, tenham cuidado, Senhores Leões, porque não vai haver dó ou misericórdia. Nós somos uma manada e uma manada em fuga é o mais fácil de dominar. Mas quando nós pararmos, olharmos uns para os outros e dissermos: «agora, vamos marrar!» não vai haver leões que nos parem.
Eu vou à manifestação de dia 2 de Março como fui a todas as outras. Sou presa nas mãos de predadores ferozes, ignóbeis e cruéis. Vou para olhar nos olhos das outras presas, para dar as mãos às outras presas. Quero estar presente no momento em que nos vamos entreolhar todos e, porque já não teremos nada a perder, perceberemos que chegou a hora de marrar!, marrar!, marrar mesmo sabendo que alguns de nós perecerão nesse momento, porque os leões têm muita força… alguns de nós ficarão… mas os leões ficarão todos caídos por terra, surpreendidos por as presas se terem tornado predadores de um momento para o outro.
Eu vou à manifestação do dia 2 de Marco porque sei que esse momento está a chegar.

Texto de João Paulo Cotrim

Entre 8 e 80

O meu pai tem mais de 80 anos, gastou a vida fazer casas, a conduzir gente, a semear e a colher. Não foi político, mas motorista, de um serviço que ele entendia como público mesmo antes de o ser. Não foi político, mas tem saudades do Diário de Lisboa, seu jornal de sempre, por junto com o Jornal do Fundão, onde aprendi a ler Drummond de Andrade. Há dias retiraram-lhe com simpatia o direito a circular sem pagar nos autocarros que conduziu anos a fio. Tentei suavizar a coisa, o preço não era assim tanto, podíamos pagar essa nova portagem. Com justa indignação, como se eu tivesse 8 anos, explicou-me: quando começou a ter salário de gente na cidade, a simples ideia de 8 horas de trabalho por dia, dias de folga ou de férias era coisa revolucionária e extravagante. Foram raivas, revoltas, greves e desobediências, com preço pago no corpo ao longo de uma vida (notem bem, tudo isto numa só vida!), que tornaram aquelas ideias mera banalidade. O passe de velho não era benesse, mas fronteira derrubada. Por momentos também eu , achando que eram apenas trocos. Sem valor, mas possuindo supremo valor. O meu pai, não sendo político, mas lendo jornais de antigamente, voltou a explicar-me o lugar da cidadania, algures 8 e 80: uma horta pode tornar-se castelo, um trovão a voz do indivíduo e a coluna vertebral um dos mais altos faróis. Continuará a olhar a adversidade nos olhos, sem que nada o cale ou lhe colha os frutos das árvores ou da terra. Entalado entre ele, de 80, e os outros, de 8, vou dizer cantando e dançando no dia 2 de Março que o povo é quem mais ordena dentro de ti, minha cidade.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Texto de Sara Gonçalves


CADA SEGUNDO CONTA, CADA TEMPO É VIDA, CADA ESCOLHA É DECISÃO

Qual é a atitude que mais estimo na vida? A honestidade. A honestidade nas conversas, no amor, no trabalho, nas compras, no condomínio, no autocarro, nos balcões das finanças, na política. A honestidade determina o nosso comportamento, configurando-se em ética.
É preciso coragem para a pôr em prática todos os dias e estar muito atento às armadilhas constantes que a nossa sociedade, pelo modo como está construída, nos coloca à frente dos pés em momentos que parecem inócuos, mas arrastando-nos para pequenas traições pessoais sem darmos conta. Muitas vezes as relevamos com um simples encolher de ombros, fazendo do que se passa com todos a desculpa pela ínfima parte que nos cabe. Quando o fazemos, não nos estamos a dar o devido valor, descaracterizando a nossa individualidade a uma série de produção mecânica, onde não cabe a natureza diferencial, em que cada um de nós contém em si a responsabilidade da sua acção diária, que se transforma em atitudes mais ou menos conscientes, e cuja força se reflecte em toda uma sociedade. Cada gesto nosso se repercute em todos com uma importância maior do que a que pensamos, porque somos pessoas e as reacções são feitas de maneira diferente da dos processos mecânicos ou simplesmente biológicos. Somos seres pensantes e sensitivos, com lógicas racionais, intuitivas e afectivas.
Para além da coragem, é preciso também clareza de pensamento e saber prever as consequências de cada atitude que tomamos, intuindo o caminho que iniciamos e reflectindo nele o que desejamos.
Eu exijo-me esta atenção no meu quotidiano e mereço dos outros esta responsabilidade de escolher a atitude que engloba o respeito por si e pelos outros. Para além de mim, exijo isso aos políticos, como em cada condutor de autocarro, como ao cidadão comum, que faz da correria a sua vida, como à avó que cuida da sua neta. É preciso cuidar, cuidar de si e dos outros sem o paternalismo e julgamento dos anseios íntimos e dos fantasmas privados, acolhendo simplesmente a diversidade de espectros de escolhas que faz de cada cidadão pessoa, e da diversificação de universos que faz de grupos de pessoas sociedades, países, continentes, o mundo e a humanidade.
É o poder consciente das nossas escolhas que nos faz ser adultos e emancipados, inteiros e plenos, harmoniosos e felizes. Porque está nas nossas mãos a possibilidade de enunciar o tempo da nossa felicidade!
Eu quero viver, ter uma família, realizar-me na minha vocação, contribuir para uma sociedade com o meu tempo, saber, dúvidas, desejos e coragens. Gostaria de abraçar o mundo com a disponibilidade de um coração inteiro, tendo sempre um sorriso à senhora que me serve o café na padaria da minha rua ou a reacção atempada de fazer parar a corrida de uma criança de três anos que corre para a estrada distraída na finta de uma bola. Gostaria de viver plenamente o poder de reivindicar uma ideia, de construir através de críticas e sugestões, projectos e espectáculos de teatro, de facilitar encontros familiares e convívios, como participar em conversas e debates, e a todas as minhas palavras dar-lhes o melhor uso possível, aliadas ao meu coração e à minha capacidade de ser honesta com ele e com os meus pensamentos que dele têm origem.
Gostaria que todos tivéssemos tempo para sentir e reflectir, para amar e para nos expressarmos com as emoções, e dos sentimentos fazer os planos de uma festa ou de um projecto de vida. Tempo para, em cada decisão, escolhermos a vida que queremos ser e que queremos viver.
Para poder ser mãe, para ter a possibilidade de dar netos aos meus pais e dos meus filhos terem os avós que eu, por fatalidades antecipadas, não tive. Porque quando a natureza tem razões que não explicamos, aceitamos a vida que nos é deixada, mas porque a política são os Homens que a fazem, não permito que me retirem a possibilidade de viver a vida com a intensidade dos desejos ao alcance da força dos meus braços!
Por isso, vou para a rua gritar, dizendo que não deixo que me tomem a vida dos filhos que ainda não tenho nos braços, que me arranquem do coração a paixão dos meus sonhos, que anulem o sorriso do fim de vida dos meus pais.
Por isso, dia 2 Março estou na rua. E não só!
Não estarei apenas na rua e sei também que não estou sozinha.
Porque queremos muito gozar as nossas infâncias, juventudes e velhices, vamos felizes e inteiros, de peito aberto e cheios de coragem enfrentar o que bloqueia o caminho das nossas vidas!
Que se lixe a troika, queremos as nossas vidas e o povo é quem mais ordena!

Texto de Jorge Palma

Meus amigos,
Braga também tem muita gente boa, é com eles que vou estar no dia 2 de Março. É bom centrarmo-nos e, sobretudo, citando o nosso maestro Victorino de Almeida, não deixarmos que Portugal se torne numa espécie de cão abandonado que lambe as mãos do primeiro que lhe der qualquer coisa para comer.
Merecemos ser muito mais que isso, haja dignidade, coragem, inteligência e solidariedade de facto. Isto está só a começar, o rumo da locomotiva está nas nossas mãos.
BOA VIAGEM!

Texto de Isabel do Carmo


O MEU AMIGO MATOU-SE

É um dos motivos porque vou à manifestação do dia 2 de Março.
Vou também em nome do meu amigo. No dia 18 de Fevereiro o meu amigo J. C. deu um tiro na cabeça. Já não vai a esta manifestação.
Era um indigente ou um faminto? Não. Era um exemplo da chamada classe média. Gostava da vida. De comer, de dançar, de ir à praia. Ele e a mulher comportavam-se como dois namorados, depois de todos estes anos. Gostava dos filhos, a quem era muito chegado, gostava da neta. Gostava do trabalho. Mas, a situação a que nos levaram criou um labirinto sem saída. De facto, sem saída para uma grande parte da população. Deixemo-nos de flores, de «há soluções para tudo», de «é preciso ter esperança» ou de «há-de correr bem». Há certas situações que não têm solução à vista. Tinha os pais em casa com oitenta e tal anos e tinham chegado ao ponto de não conseguirem tratar de si próprios. Solução? Um «lar» custa 1300 euros para cada um. Uma empregada permanente anda por aí.
Tinha empregados a quem tinha que pagar salários todos os meses. Tinha empréstimos ao banco, crédito a cumprir, letras. Tinha clientes que não pagavam, porque por sua vez não lhes pagavam a eles.
Os filhos trabalhavam, mas havia um apoio indispensável, por causa da precariedade e por causa de situações de doença.
O senhorio acabava de, em concordância com a nova lei das rendas, passar-lhe a renda para o dobro.
Tinha solução para esta espiral que todos os dias se agravava? Não tinha.
Declarava insolvência, renunciava a todos os pequenos bens, ia para a rua, abandonava pais e filhos ao destino? Claro, tudo é possível.
Mas a dignidade tem um preço.
Os amigos podiam ajudar? Muito pouco.

Foi com certeza em nome da dignidade que teve a coragem de acabar com a vida.
Nesse mesmo dia veio ter ao Serviço de Urgência do Hospital de Santa Maria uma senhora que se atirou para debaixo do comboio do Metro. Salvaram-na, mas ficou sem um braço. Dias antes atirara-se a professora e o filho de uma janela em Bragança. Na ponte da Arrábida são frequentes os ajuntamentos porque alguém se atirou.
Estamos a assistir a uma epidemia?
Como os nossos governantes e as estruturas internacionais e o poder financeiro mundial já não distinguem entre o Bem e o Mal, temos nós que desobedecer às leis do Mal, protestar, mas não só. Encontrar o caminho para derrubar este Poder. No dia 2 de Março o meu caminho começará na Maternidade Alfredo da Costa na Maré Branca e continuará com todos os outros, através de Lisboa.
Também em nome do meu amigo que NÃO AGUENTOU.

Texto de João Lavinha

Sou um cidadão sem partido, por enquanto com emprego, mas cuja esperança já viu melhores dias. Com esta bagagem, irei juntar a minha voz à de todos aqueles que, no dia 2 de Março, uma vez mais farão da rua a sua casa comum («Em cada esquina um amigo…»). Faço-o para demonstrar a minha radical recusa de que a troika* desrespeite os nossos direitos do trabalho, degrade os nossos serviços públicos universais (escola, saúde, segurança social, justiça, segurança), dificulte a produção e fruição dos bens culturais, inviabilizando o notável percurso de desenvolvimento em democracia, só tornado possível pela Revolução de Abril.
Uma das traves mestras desse processo — que é necessário retomar sem hesitações, sob pena de se arruinar a democracia e enterrar o país — foi a aposta na melhoria da qualificação dos nossos recursos humanos e na construção de uma comunidade científica com massa crítica, cosmopolita e servida por infra-estruturas e instituições adequadas, capaz de equacionar os nossos problemas e criar a base de conhecimento cientificamente validado, sobre a qual tomar as decisões políticas, administrativas ou técnicas. Com os actuais cortes no financiamento e as dificuldades crescentes na sua utilização e sem o suficiente esforço de recrutamento e retenção de talentosos jovens investigadores e técnicos de investigação, que vemos partir em número crescente para latitudes mais acolhedoras para o capital humano bem qualificado, perspectiva-se já a regressão de Portugal a uma situação de atraso científico e tecnológico que julgávamos para sempre ultrapassada.
Ficaremos, assim, menos capazes de identificar, explorar e valorizar de forma sustentável os nossos recursos naturais endógenos. Por outro lado, estaremos menos bem equipados para fazer face aos múltiplos perigos e riscos ambientais, alimentares, climáticos, sísmicos, sociais ou de saúde, que nos ameaçam e que precisamos de monitorizar para assim os prevenir ou minimizar os seus efeitos. O que não deixará de agravar a nossa dependência e o nosso endividamento. Urge, por isso, construir uma alternativa ao actual poder político, apoiada pela mais ampla base social possível. Como mais um passo nesse sentido, respondi com entusiasmo ao apelo do movimento «Que se lixe a troika! O povo é quem mais ordena!» participando civicamente na jornada do próximo 2 de Março.

* Um governo multinacional não eleito acolitado por um governo nacional que, prometendo o que sabia não ir fazer, colheu o voto de uma maioria dos portugueses justamente zangados com o governo anterior.

Texto de Manuel Jorge Marmelo

Foi Bertolt Brecht, servindo-se do seu alter-ego «Senhor Keuner», quem contou a história do desempregado que, em julgamento, quando lhe perguntaram se pretendia fazer um juramento laico ou religioso, respondeu que, na situação em que se encontrava, aquela questão tinha deixado de fazer sentido. Tinha, muito simplesmente, mais com que se preocupar.

Talvez os indivíduos que nos governam se fiem demasiado nesta lição e tenham entendido que, num país com um desemprego galopante como o nosso, as pessoas estão tão ocupadas em imaginar um modo de sobreviver que não terão tempo para se opor ao constante acosso de que vão sendo vítimas. Mais preocupados em assegurar, ao menos, o jantar do dia seguinte, queremos lá saber se, em 2015, ainda haverá alguma coisa a que possamos chamar nossa e que não tenha já sido entregue à grande roda dos amigalhaços instalados, a troco de férias no Copacabana Palace e lugares em conselhos de administração.

Quando, há dias, foi interrompido pela Grândola, Vila Morena num debate (chamemos-lhe assim por mera comodidade) em Vila Nova de Gaia, o urubu Miguel Relvas assinalou a saída dos manifestantes da sala com recurso ao velho adágio, segundo o qual «o povo é sereno». Menos de vinte e quatro horas depois, no ISCTE, em Lisboa, outros manifestantes conseguiram que Relvas se calasse e abandonasse o salão, recordando a quem por acaso não se lembre que, por muito sereno e paciente que seja o povo, também chega uma altura em que se lhe esgota a proverbial paciência.

A saída do rotweiller do governo do ISCTE com o rabo entre as pernas é uma coisa que dá que pensar. Desde há muito tempo que me parece claro que só existe uma forma de obrigar quem nos governa a ganhar decoro e vergonha na cara: impedindo que saiam à rua sem serem confrontados com o descontentamento daqueles que vão passando mal enquanto a banca recebe, de papo cheio, os milhões de recapitalização da troika. Se, de cada vez que põem o nariz fora da porta, escutassem a Grândola e aquele «o povo unido jamais será vencido», talvez Passos Coelho e os seus elfos vendilhões percebessem que se lhes está a acabar o tempo de saldar o que não lhes pertence.

É por isto que manifestações como a que está marcada para 2 de Março são importantes: para que a cáfila possa ver quantos somos e de que tamanho é a nossa determinação. Um dia atrás do outro, porém, é necessário que continuemos mobilizados e activos — para que, ao menos, não volte a suceder que grupos de cidadãos desçam à miséria de ir cantar as Janeiras ao indivíduo que cinicamente lhes assalta os bolsos, como servos da gleba indo prestar vassalagem ao senhor feudal.

Texto de Guadalupe Magalhães Portelinha

Amigo, amiga
a vida é tua, é tua a vida!

Levanta a cabeça e luta e voa como a gaivota

afasta todos os medos, vê mais longe a tua rota
Levanta a cabeça e luta pelo pão, trabalho e tecto
não deixes que te enganem com miragens de deserto!

Levanta a cabeça e luta com tuas mãos de razão
pelos Direitos Humanos pelo povo e p'lo teu chão
Levanta a cabeça e luta e constrói o teu destino
por um mundo melhor, pela paz canta o teu hino!

Amigo, amiga
a vida é tua, é tua a vida!

Levanta a cabeça e luta contra ratings e banqueiros
o povo é quem mais ordena, vai destruir os poleiros
Levanta a cabeça e luta, com ira e indignação
contra as leis desta TROIKA que nos levam a pedir pão!

Levanta a cabeça e luta, com a Grândola na voz
somos todos a muralha, juntos não estamos sós
Levanta a cabeça e luta, o povo está a mandar
gritando alto à TROIKA que se vá mesmo lixar!

Levanta a cabeça e luta com garra e com coragem
contra os destinos de fome, guerra à vergonhosa pilhagem
Levanta a cabeça e luta, vem para a rua gritar
o povo é quem mais ordena e vai Portugal acordar!

Amigo, amiga
a vida é tua, é tua a vida!

Levanta a cabeça e luta, sê borboleta colorida
que libertada da crisálida procura uma nova vida
Levanta a cabeça e luta, vai fundo como a toupeira
escava túneis de esperança e de justiça verdadeira!

Levanta a cabeça e luta, sê cigarra na alegria
nos cantos de resistência sob o signo da utopia
Levanta a cabeça e luta, sê formiga na convicção
e na certeza dos caminhos que levam à revolução!

Amigo, amiga
a vida é tua, é tua a vida! 




terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Texto de André Gago

Em regra, defendo que os governos eleitos devem cumprir a legislatura. Nunca fui partidário de querer derrubar governos a cada assombro de protesto. Mas a má moeda está de volta, e não há quem assuma a responsabilidade de a retirar de circulação. Para meu espanto, vejo agora muita gente temerosa de que este governo se mantenha em funções até 2015. Ora este governo está morto, e o pais não pode ser governado por um cadáver. Este governo está morto porque já ninguém — em todas as classes, da esquerda à direita —, lhe reconhece as qualificações, as qualidades, as capacidades e a decência humana e política mínimas exigíveis para ser governo. Este governo é um erro tremendo, e os que nele votaram sabem-no bem. Talvez não tenhamos grandes escolhas à nossa frente, mas arrisco dizer: tudo é melhor que isto! Teremos, no futuro próximo, de proceder a grandes alterações de regime e até, quem sabe, dar o salto em frente para uma nova República. Mas até lá, o efeito destruidor deste governo não se esgota na economia e nas finanças: pelo caminho, rasgam-se acordos, aliena-se património, salvam-se os prevaricadores, pisca-se o olho ao eleitorado mais serôdio e proclama-se a mediocridade como engenho e como desígnio para Portugal. Este governo, e os seus nomeados, não estão apenas a destruir o país: estão a destruir o nosso legado civilizacional. É urgente enterrar este cadáver, para bem dos vivos.

Texto de Manuel Paulo

Não podemos permitir que um povo inteiro esteja a ser literalmente sangrado em função dos interesses de especuladores económicos e banqueiros nacionais e internacionais.
As administrações que conduziram o país a este estado, que estimularam o desaparecimento da agricultura, pescas e indústria em geral, foram-se sucedendo no poder, independentemente da sigla partidária.
Os valores passaram a ser números. Às pessoas chama-se «recursos humanos» e há que embrutecê-las. Desinveste-se na cultura, e nisso as administrações portuguesas têm sido especialmente cuidadosas. Os agentes culturais deste país são quase guerrilheiros para conseguir viabilizar o seu trabalho. Instala-se a corrupção descarada, uma justiça que não funciona. Estamos gradualmente a regressar a um fascismo vagamente maquilhado de democracia. A informação é manipulada, está a criar-se lentamente uma espécie de estado policial, e é preciso que as pessoas se apercebam disso.
As anteriores administrações não são muito diferentes, mas esta capricha especialmente na arrogância, aldrabice, desonestidade e baixíssimo nível humano e cultural. É uma vergonha.
Há que correr com esta gente antes que seja tarde e a expressão popular é o que tem mais força. É mesmo necessário sair à rua, mostrar-lhes de novo e as vezes que forem precisas que não os queremos cá.

Texto de Manuel Gusmão

Onde pára a democracia?
Para onde quer que se olhe, os sinais que avançam e nos cercam são os de um país que empobrece e se afunda, enquanto uma caixa negra nos nega as mais nítidas evidências do imenso desastre que para nós preparam.

1. A Dívida, quê?
A dívida
, quê? A dívida Soberana é como se chama a uma dívida assumida e garantida por um ser ou uma entidade soberana (um estado ou o seu banco central). Este par (nome + adjectivo) joga, com a gramática, um jogo que te leva à certa. Só compreenderás o que ele significa, se compreenderes que, no fim de qualquer passo de dança, a dívida deixou de ser uma propriedade ou uma qualidade do estado. O que ela exprime é que é ela que é soberana. Quem manda na política sou eu, a dívida. Tal como quem manda nisto tudo são os bancos (privados).

2. Soberania
Que Europa é esta que nos atou ao pescoço o BPN, em cujo buraco o estado enterrou vai para sete mil milhões de euros, e não nos autoriza o investimento de 1300 milhões de euros para o saneamento financeiro da TAP, o maior exportador do país e uma empresa estratégica para o nosso desenvolvimento soberano? É certamente a mesma Europa que fica sentada à espera que o governo português manobre de forma a tornar aceitável o inaceitável, a destruição dos estaleiros de Viana do Castelo.

3. Incomensurável, inaceitável hipocrisia.
As manifestações como aquela a que se assistiu nas instalações do ISCTE, em que um grupo de estudantes calou essa figura inenarrável de licenciado-com-emprego (Miguel Relvas), equiparado a governante, «suscitam necessariamente», disseram eles, os da sua pandilha, «o repúdio da parte de todos quantos prezam e defendem as liberdades individuais, designadamente o direito à livre expressão no respeito pelas regras democráticas». E, coisa espantosa, eis que se lhe juntam alguns outros, de outra pandilha, mas da mesma troika, usando os mesmos argumentos e tiques de quem se prepara para criminalizar o protesto.

4. O desemprego
Em Portugal, 51 % dos jovens licenciados estão no desemprego. É uma violência que lhes é feita, assim como ao país que se vê por essa via impedido de utilizar o seu trabalho qualificado. A dor humana do desemprego jovem é a dor causada por uma amputação social de perspectivas de vida. Entretanto cresce também o desemprego de longa duração. Às suas vítimas cabe agora o sofrimento de verem desqualificada e ofendida a sua experiência de vida. Jogar uns contra os outros é uma jogada miserável contra o trabalho. Torna-se cada vez mais claro que esta ofensiva contra direitos individuais e colectivos é uma révanche do grande capital, que quer arrancar aos trabalhadores assalariados tudo o que foi obrigado a ceder-lhes ao longo do último século e que constitui uma plataforma civilizacional avançada.

5. Saúde pública
Ela entrou na nossa sala, como se fosse uma pequena ventania que se libertasse e disse: «eu e o Óscar, foi já demasiado tarde que nos apercebemos que ela não aviava na farmácia as receitas por inteiro. Agora sei que deitá-los de lá abaixo já não é só um objectivo político, tornou-se uma necessidade urgente de saúde pública».

6. A organização da nossa legítima defesa
Tendo perdido o medo ou a repugnância que lhe provocavam certas palavras e frases que usamos, sobretudo em circunstâncias em que se trata de atribuir intenções a certos gestos ou modos de agir, chegou um dia em que a ouvimos dizer, muito calma e cheia de fúria: «mas eles estão a matar-nos; eles querem matar-nos». A nota de espanto que soava na sua voz indicava que ela já estava preparada para compreender que se tratava de pôr na ordem do dia a organização da nossa legítima defesa.

7. Quem somos nós?
Nós somos «a esperança que não fica à espera».

Quem pode ser no mundo tão quieto
Que o não movem nem o clamor do dia
Nem a cólera dos homens desabitados
Nem o diamante da noite que se estilhaça e voa
Nem a ira, o grito ininterrupto e suspenso
Que golpeia aqueles a quem a voz cegaram
Quem pode ser no mundo tão quieto
Que o não mova o próprio mundo nele.

Texto de Jorge Falcato Simões

Eu vou. Como fui ao 1º de Maio de 1974 e, dois dias depois, à ocupação do Bairro da Fundação Salazar (agora bairro 2 de Maio, lá para os lados da Ajuda). Dias intensos. Dias em que sonhei (sonhámos) um Portugal diferente do pais cinzento que nos tinha acompanhado até uma semana antes e que, cada vez mais, sentimos que regressa com pezinhos de lã.

Dia 2 vou manifestar-me pelas saudades que tenho do futuro. Do futuro que começou em 74 e que foi rapidamente atraiçoado. Vou manifestar-me neste presente em que esta traição à esperança dos que estiveram naquele 1º de Maio, e dos que saíram dos bairros de lata e abriram as janelas daqueles prédios na Ajuda gritando que já tinham casa se tornou tão evidente. Vou e espero encontrar, no dia 2, todos os que sonharam outra vida, outro país e que estão dispostos a combater este pesadelo demitindo, na rua, este governo.

Mas também vou por muitos que não podem ir. Por aqueles a quem é costume chamar de cidadãos invisíveis. As pessoas com deficiência, para quem não foram necessários estes tempos de crise para verem negados os mais básicos direitos de cidadania. São os que não podem manifestar-se, porque estão condenados - sem terem cometido nenhum crime - à prisão domiciliária ou a viver em instituições donde não conseguem sair. São aqueles que sobrevivem com 200 euros por mês da Pensão Social de Invalidez - esta designação salazarenta diz tudo - que nem para se deslocarem para tratamentos têm dinheiro. São os jovens que não têm direito a ter uma vida autónoma, sujeitos a uma dependência familiar por ausência de apoios do Estado, ou internados em "lares" de idosos por falta de alternativa.

Vou por todos eles e espero ter comigo mais gente com deficiência porque é altura desta invisibilidade acabar. É altura de sair à rua e dizer que existimos e que não somos cidadãos de 2ª. É altura de dizer que a crise não é desculpa para manter a exclusão a que estamos sujeitos porque direitos humanos não são regalias.


É pelo direito de todos os portugueses a uma vida digna que vou sair à rua dia 2.

Texto de Pedro Ribeiro


O Homem Livre

O desemprego galopa para os 17 %, a economia cai a pique, nove empresários da restauração suicidam-se no Porto e no Algarve por causa da crise. Eis o paraíso que Passos, Gaspar e a troika prometem. Eis o paraíso capitalista que traz depressões, suicídios, pobreza, miséria, tédio. Eis o paraíso dos especuladores e dos mercados que destrói o encontro, a amizade, a vida. Eis a «vida» que temos, feita de obediência cega ao deus-dinheiro, ao deus-mercado, eis a sociedade onde o medo impera, onde o homem «vive» diminuído, sem um rasgo, sem luz. Urge recuperar o homem inteiro, o homem afirmativo que ergue a voz, que não vai na conversa da propaganda. Urge ser o homem e a mulher que cantam a Grândola, que não vão aos cafés derrotados, que não fazem depender as suas vidas da bola. Urge o homem que quer destruir o capitalismo e restaurar a vida. Que não aceita mais a escravidão e o medo. Urge o homem que quer construir-se. Urge o homem livre.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Texto de Rui Zink

1
Acredito no poder do diálogo. Por isso vou à manifestação de 2 de Março.

2
Sou ou tento ser uma pessoa de diálogo. Acredito que o diálogo é a melhor das formas de confrontar pontos de vista sobre o bem colectivo. Que país queremos? Quais as prioridades? Como calibrar liberdade e responsabilidade? Onde investir? Que aspectos do Estado são essenciais e acessórios? São questões destas que interessam ao cidadão que sou — que tento ser. Sou dos que acreditam que «o poder não deve cair na rua». Mas os corredores do palácio também não me parecem melhor sítio para o poder cair. E nem se trata de cair ou fazer-cair, trata-se de construir: uma manifestação pode ser uma bela forma de construir. As manifestações de que gosto são tanto protesto como prova de vida. Ou seja, prova de esperança. Há neste momento uma discussão acesa (bem melhor que um monólogo apagado) acerca das prioridades para esse bem colectivo chamado Portugal. E dando de barato que no governo eleito — apesar de com outro programa — haverá tendências e pessoas que desejam de facto o bem comum, uma manifestação pública é a forma de outras tantas pessoas defenderem que há outras vias, quiçá mais eficientes, de atingir esse objectivo. Ninguém pode falar em nome de todos: mas se isto é verdade para quem vai à manifestação, mais verdade ainda é para quem (a meio do mandato) se divorcia até mesmo dos seus próprios eleitores. Não sei quantas vozes eu represento ao ir à manifestação, mas sei que tenho menos voz se não for.
Desta manifestação vai sair alguma coisa? Boa pergunta. Posso dizer uma coisa: quando nos manifestamos há a remota possibilidade de a nossa voz se fazer ouvir. De a outra parte saber que não detém o monopólio da razão, ainda que reclame para si o monopólio da força. E, a menos que a telepatia já tenha sido inventada, caladinhos é que não vamos a lado nenhum.
Ainda assim, é certo que, neste Portugal acinzentado «cada um sabe de si». Ora eu, pelo menos, sinto-me mais cidadão quando dou a voz ao manifesto, e uma vez por outra gosto de ter gente ao meu lado.

Texto de Ricardo Morte

Tenho pensado muito nisto. No tempo que vivemos. Sei que este é o tempo. Este é o nosso tempo. Tempo de assumir o combate, tempo da audácia, tempo de olhar para o lado e ver sempre mais um de nós, mais um que enfrenta esta engrenagem cínica com que nos procuram triturar e fazer desistir.
Desistir. Adormecemos e acordamos a pensar porque é que somos poucos nas ruas. Porquê? Não se justificaria outro tipo de resposta? Outra forma de estar? Talvez… Mas se o verbo é desistir, nós dizemos insistir. Se o verbo é abandonar, nós dizemos lutar. Dizemos persistir, abraçar, dizemos caminhar, lado a lado, ombro a ombro. Quantos seremos? Verdadeiramente não importa. Sim, são assim os homens e mulheres de esquerda.
Mas o medo. O medo. O medo é cancro… o medo germina… ganha raízes… medo que se espalha, que tudo contamina. Medo do futuro. Medo de não conseguir viver. Medo de não conseguirmos sustentar os nossos filhos. Medo de falhar a vida… deixá-la passar por nós. E ela corre. Corre rápido. Amanhã é tarde. Perder. Medo de lutar. Medo de dar a cara. O medo tira-nos das ruas. Medo de ficar sozinho na luta. Quantos seremos?
Coragem. A única coragem que nos pedem hoje é a coragem cínica de passarmos por cima do nosso vizinho e concorrente por aquele lugar, aquele trabalho, aquele ordenado… como vamos derrotar o medo? Onde vamos arranjar coragem para sermos dois? Bastam dois.
Voto. Votaste neles. Acontece. O embrulho seduz. A resposta está lá sempre, infalível, certa como a falácia. Não tenhas medo de o assumir! Não tenhas medo de o assumir! Mas hoje não tenhas medo de gritar bem alto que eles não te enganam de novo. Acabou. Nunca mais. Eles todos. Eles, os mesmos de sempre transmutados nesta safra imbecil de neoliberais penteados de risco ao lado que neste momento nos governam… No dia em que lhes virares as costas… em que fores milhões… eles vão olhar para ti.
Convocam-se. Convocam-se os «ajustados», os desesperados, os «consolidados». É urgente um novo sentido na vida. Resistência. Os «remodelados», os «emprateleirados», os que não têm comida para dar aos filhos. Os que não têm dinheiro para remédios, ou que aviam as receitas parcialmente… à medida da miséria em que vivem. Tantas palavras novas que entraram nas nossas vidas… palavras como a fome.
Perguntar. Tempo de perguntar. Qual é o vosso limite? Quantos mais desempregados serão precisos? Qual é o limite? Um milhão e quatrocentos mil não chegam? Quantos mais suicídios? Quantas mais empresas destruídas? Quantas mais vidas destruídas? Quantas mais depressões? Quantas mais crianças às quais é negada uma infância? Quantas? Quantas mais pessoas desesperadas, pessoas sujeitas a um recolher obrigatório cínico, que não existe formalmente, mas existe de facto, pois as pessoas não podem sair de casa, porque não têm dinheiro para sair de casa?
Nossos. Eles não são dos nossos. Em cada simples escolha, eles optarão sempre pela defesa dos interesses dos seus, do seu grupo, da sua casta. Quer seja banca, quer sejam grandes empresas, quer seja nas privatizações desenfreadas, na venda dos anéis e de parte dos dedos. Eles não são os nossos. Não são como nós. Não sofrem como nós. São uma casta à parte. Não bebem a vida da mesma forma que nós. São de plástico. São canalhas.
Limite. Quando vamos atingir o limite? Quando iremos ver o milhão de desempregados nas ruas? Quando iremos ver os desalojados de punho erguido? Os precários? Os que sentem que brevemente estarão sem tecto? Os pais e mães, hoje sós, de todos os jovens que tiveram que emigrar, pois Abril não se cumpriu para eles? Onde estão aqueles aos quais é negada a saúde?
Estamos, como país, à beira da tragédia. Esperam que nos deixemos dominar com mansidão… serenidade. Até porque o povo é sereno, dizem...
Vamos ser cúmplices, ou vamos mudar isto? É que, como Victor Hugo um dia disse, «entre um governo que faz o mal e o povo que o consente, há certa cumplicidade vergonhosa». O tempo é hoje. O nosso tempo é agora! Dia 2 estou na rua.

Texto de Mariana Avelãs

«Deixem-me em paz porra, deixem-me em paz e sossego, não me emprenhem mais pelos ouvidos caralho, não há paciência, não há paciência, deixem-me em paz caralho.»

Quando a fúria descamba em mera apatia, tudo fica na mesma. A culpa é dos filhos da puta dos políticos? Ficar em casa a apontar o dedinho é política em estado puro: a política de quem deixa acontecer. Se o que não te chega para o pão é migalha em fortunas de aldrabões que sustentas, se foste aos mercados mas continuas sem emprego, se já estás de malinha feita à laia de pontapé no cu, só tens duas hipóteses: agir em linha com as previsões do governo, nas fileiras do silêncio cúmplice ou… mandar a apatia à merda e sair à rua a 2 de Março. Já deu para perceber que sacrifícios só geram mais sacrifícios, não? Este círculo vicioso sobrevive à custa daqueles que confundem moral com o próprio cu (Eugénio dixit), e ficam em casa a dizer que as manifs não mudam nada. Filhos da puta de progressistas do caralho da revolução que vos foda a todos, não é?

Psssiu! O respeitinho é muito bonito. Pois é. E que respeito vais ter por ti se ficares em casa a 2 de Março?

Comunicado de Imprensa

Nestes últimos dias, centenas de pessoas lembraram ao governo que em democracia "O Povo É Quem Mais Ordena".
Passos Coelho, Miguel Relvas e Vítor Gaspar têm de saber que não é possível governar contra o povo. O executivo do PSD/CDS tem servido a troika, não tem servido as pessoas que vivem e trabalham em Portugal.

Não tem legitimidade democrática um governo que foi eleito a prometer que não aumentava os impostos, não cortava os subsídios de férias e de natal, não ia despedir funcionários públicos, nem tirar o dinheiro aos reformados, e que quando se viu eleito fez tudo aquilo que garantia que não ia fazer. Este é o governo que tirou dinheiro aos reformados, em vez de responsabilizar quem roubou o BPN. Preferiu dar milhares de milhões aos banqueiros, em vez de investir na criação de empregos. Cortou salários e subsídios a quem trabalha, em vez de cortar nos lucros chorudos dos agiotas que lucraram com as parcerias público-privadas.

Este governo não quer ouvir a Grândola Vila Morena, porque para ele a letra de uma canção não pode ter fraternidade nem igualdade; este é o executivo daqueles que cantam a marcha fúnebre dos portugueses, que reza que a troika é quem mais ordena.

Numa altura em que os senhores da troika vão sair por aquela porta para fazer a sétima avaliação do Memorando, é preciso que as pessoas que vivem em Portugal respondam a esses senhores com uma avaliação daquilo que o governo e eles fizeram.

Em 2011 havia 12,7% de desempregados, no final de 2013 prevê-se que este número atinja os 17,5%. Nessa altura, o desemprego real, que tem muitos milhares de pessoas que não cabem nas estatísticas, já terá passado os 25%. Mais de um milhão e quinhentos mil portugueses não terão trabalho.

A dívida pública estava em 108%, em 2011, em 2013 será superior a 122%.

Não há mês em que os salários e as reformas não desçam. Muitos já perderam mais de 20% dos seus rendimentos. Há milhares de pessoas que perderam as suas casas.

Desde que a troika chegou a Portugal, o produto nacional bruto já caiu cerca de 7%, e todos os anos são milhares as empresas que fecham. A queda do produto interno bruto para 2013 vai ser o dobro daquilo que o governo previu. O ministério das Finanças, para cobrir o buraco que ele próprio criou, já fala em ir buscar mais 1200 milhões ao bolso dos portugueses.

Um relógio parado acerta mais vezes nas horas do que o governo de Vítor Gaspar acerta nas previsões económicas. A política do governo e da troika só nos leva para o abismo. Chegou o tempo de dizer ao governo e à troika que é O POVO QUEM MAIS ORDENA.

No dia 2 de Março convidamos todos e todas que vivem em Portugal a irem para as ruas e a dizerem que este país é deles, e que o seu futuro está nas suas mãos. Que, para vencer a crise a que nos conduziram os governos incompetentes e os negócios escuros de muito poucos, é preciso dar a voz ao povo, e que em democracia é O POVO QUEM MAIS ORDENA.

DIA 2 DE MARÇO VAMOS COLOCAR NAS MÃOS DE TODOS O NOSSO FUTURO E VAMOS SAIR ÀS RUAS DE MAIS DE 40 CIDADES, EM PORTUGAL E NO ESTRANGEIRO.

Aeroconferência



No dia em que a troika chega a Portugal para a 7ª avaliação, membros do colectivo "Que Se Lixe a Troika" vão ao Aeroporto de Lisboa dar uma conferência de imprensa para apelo à manifestação do próximo sábado, dia 2 de Março.

QUE SE LIXE A TROIKA. O POVO É QUEM MAIS ORDENA!

Texto de Pedro Barroso


Santos Silva quer que «alguém envie para Belém» a canção Acordai.

...seja pela inconveniência, pela quebra de protocolo, seja até pela própria desafinação motivada pelos nervos dos contestantes, a Grândola tem sido de novo emblema e de novo musicalmente estropiada, por grupos de bem intencionadas pessoas, que com isso pretendem preparar o advento de uma-qualquer-coisa-que-não-sabemos mas vai ter que surgir. E vai acontecer, estamos certos.
Habituado a mandar por decreto, agora o sempre-ex-ministro-de-alguma-coisa dá recados urbi et orbi... e ordena-nos, muito revolucionário, que alguém o faça.
...pois bem. Na minha qualidade de músico veterano sugiro que ele próprio o faça. Que vá ele; e cante. Mal, mas cante.
Só que a vida está tão difícil aqui para este lado, com tanta falta de contratos decentes, que eu prontifico-me, mediante uma verba a combinar - de acordo com as suas modestas posses de profissional da política há 40 anos - a dar-lhe umas breves noções de colocação de voz e solfejo, pois a partitura do meu conterrâneo Graça é, como sempre, exigente. E o provecto presidente - coitado, provavelmente já falecido ou retirado, não sabemos... - pelo menos acordaria sem gritarias e desafinações desordenadas.
Mas se, com isto, V.ª Ex.ª julga que nós já esquecemos o autismo socrático com que fomos derrubados, pela triste realidade de os cofres estarem rapados e não haver taco nem para pagar à PSP, nós não esquecemos.
Vocês foram os distribuidores do vírus. Vocês puseram o país no chão. Pior. A pedir; no último degrau da esquina da Europa e de chapéu roto na mão. Um país com mil anos de História, viagens, cultura e pergaminhos!...
Vocês venderam Portugal.
Estes sujeitos de hoje - que muito justamente insultamos - são o braço violento da «esmoler» Europa financeira. Os troncos da cobrança. Odiamo-los. MUITO. Roubam-nos todos os dias.
Mas essa condição e essa dependência começou e foi imposta com o vosso descalabro, o vosso corporativismo a vossa complacência.
Constâncio não sabia o que estava a acontecer? Todo o país sabia e o Banco de Portugal não?! Claro que sabia, mas quem viesse atrás que fechasse a porta.
O nojo que me dão é o mesmo.
Portanto o Acordai deve ser cantado no PAÍS todo, de alto a baixo.
Quantos Jardins, quantos Loureiros serão ainda necessários para que isto rebente e o país finalmente aprenda todos os velhos cantos das novas lutas, e a gente acorde finalmente por nós próprios, sem que ninguém nos mande?
Quem precisa de acordar é o povo. Esse é que anda adormecido.

Mural em Lisboa

Eram homens, mulheres e crianças, cada um com o seu rolo
"Isto aqui era uma orquestra, quem diz o contrário é tolo"

OBRIGADO a todas e a todos os que vieram ajudar.
QUE SE LIXE A TROIKA. O POVO É QUEM MAIS ORDENA!



(Rua Marquês da Fronteira, Campolide)

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Texto de Rui Dinis

Vou sair à rua e irei contigo, com quem sempre tenho ido, mesmo que não vá mais ninguém.
Contigo também que, da última vez, sem saberes bem o que te empurrava porta fora, sem saberes bem que besta é esta, que nome lhe dar, essa mesmo que te vem sugando a vida, palmando a vontade, matando o desejo, comendo o pão e agora até a água te cobiça, foste à rua para te juntares. Para saberes afinal como é essa coisa de nos juntarmos a outras mulheres e a outros homens. Para saberes se o teu grito pode ou não ser o grito de outros.
Sairei à rua. Sairemos à rua.
Nos primeiros instantes seremos poucos. O Marquês será ainda rotunda quando olharmos os primeiros rostos. Meia dúzia de pessoas, ali de volta dum cartaz que estão a pintar, acenam a um carro que apitou enquanto gritam o que escreveram: «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!» Em volta não param de chegar. Vêm em grupos de dois, de três, muitos pela primeira vez como tu vieste também: sós. Uns com mochila às costas. Outros com os filhos. Tiveram de cortar o trânsito e agora ocupas a estrada, tu e as centenas que já não consegues contar. Já não cabemos nos passeios, grita alguém que não vês. Queres dar uma volta e subir a um banco ou a um poste, mas agora já não interessa, porque são muitos e vêm de todos os lados, porque ficas com medo de perder o grupo. «JAMAIS SEREMOS VENCIDOS». Mas entretanto vês outros com um cartaz a dizer «O POVO É QUEM MAIS ORDENA» e de novo perdes o medo. Por todo o lado há pontos de exclamação e desistes da investida, porque já não queres saber quantos são, contar às vezes é estúpido, pensas agora que os rostos estão mais perto, quase colados.
É Março, mas a luz faz lembrar a de Setembro, naquele dia, lembras-te? Sim, eu sei que escolheste ficar em casa nesse dia e ficaste a pensar «por que diabo é que não fui», mas não faz mal, porque eu sabia e foi como se lá estivesses estado e o ar estava febril antes de arrancarmos e depois éramos tantos que ninguém mais parecia saber onde tudo tinha começado. Então percebes que estás em Março, que afinal não sentes medo nenhum e que aquelas pessoas estão ali, porque só podem querer as coisas que tu queres e que portanto algum sentimento de justiça as move a elas também. E claro, claro que sim, é evidente agora o que logo nos primeiros instantes tinhas avistado nas expressões de todos os rostos com que te foste cruzando e te parecera, à chegada ao Marquês, novo e inesperado: os homens e mulheres desta terra conhecem a justiça e hão-de fazer ouvir a suas vozes. Desta terra que a cada um de nós pertence e que agora, a pretexto dum mercado onde nunca entraste, onde não tens banca, não podes vender nem comprar e muito menos discutir os preços, é queimada. Queimam esta terra como se fosse a terra deles, queimam a terra e dizem que é assim, que tem de ser, que é para o teu bem e para o bem do teu pai e da reforma que ele não vai ter, porque lha vão tirar antes de ele lá chegar e que há é que agradecer porque lá se vai mantendo o emprego, mas tu vês os outros à tua volta e vês a tua irmã mais velha que queria tanto ter um filho, mas aguarda colocação talvez para o ano.

E porque hoje, 2 de Março, tanto nos faz o dia, tanto nos faz a cidade, porque somos todos do Porto e de Évora e também de Lisboa e de Grândola e somos de Fortaleza e de Londres e de Rabat e Boston e somos muitos, quase todos. Agora que erguemos a cabeça e vemos a dignidade na cara de cada um (essa que parecia termos esquecido), agora que deixámos todas as máscaras em casa e parece assim que podemos ter esperança, porque eu vejo, eu juro que vejo que juntos somos uma força enorme e que não tenho de ter medo. Quando chegar a casa será tarde e estarei muito cansado, mas ainda vou ligar a televisão e verei, verei que lá também estiveram na rua, em todas as cidades, noutros países, nem vou acreditar no que vejo, mas saberei, porque também lá estive e vi. Vou ver as imagens na televisão e surpreender-me-ei por serem insuficientes as imagens para contar como tinha sido, e agora eu sei, eu sei que jamais seremos vencidos. Sei , porque lá estive, que JAMAIS SEREMOS VENCIDOS!

Depois a televisão será desligada. No outro dia sairemos de novo. Iremos de novo para a fábrica, para a escola, rumaremos ao centro de emprego, ao escritório. Conduziremos de novo os táxis e os autocarros e os comboios. Sentar-nos-emos em bancos de jardim, no bar do hospital. Iremos a consultas e a reuniões que já estavam marcadas, mas nunca mais adiaremos, um dia que seja, a saída para a rua. Porque agora já sabes e voltarás as vezes que forem precisas. Porque agora já sabes e viste com os teus próprios olhos que «dentro de ti ó cidade, O POVO É QUEM MAIS ORDENA!»

Texto de Jorge Silva Melo

Não podemos deixar que nos matem, nos roubem esta felicidade de estarmos vivos e juntos, não podemos adiar a nossa vida, não queremos esta vida assim, queremos apenas ser amigos uns dos outros — e livremente pensarmos e livremente viver. É difícil. Mas queremos, e assim faremos tudo para deitar abaixo quem nos impede a vida e essa coisa a que chamamos amor.